sábado, 29 de maio de 2010

Tempo de Alice

Elisa Marconi e Francisco Bicudo

Alice no país das maravilhas, livro do britânico Lewis Carroll, que figura na prateleira dos clássicos da literatura mundial, está comemorando 145 anos de publicação. A continuação da história da garota de cabelos loiros que entra num mundo mágico depois de cair na toca de um coelho, Alice no país do espelho, é um pouco mais jovem, tem 138 anos. Apesar das idades avançadas, as duas obras conquistaram recentemente o status de um dos assuntos preferidos da mídia, principalmente nas páginas e editorias de cultura e comportamento. O estopim responsável por essa retomada e redescoberta de Alice é o lançamento da versão cinematográfica da narrativa, dirigida por Tim Burton, famoso pelos personagens tão grotescos quanto adoráveis, como o barbeiro meio frankstein Edward Mãos de Tesoura(1990), interpretado por Johnny Depp. As notas seguem pela seção de livros e terminam na seção de decoração, moda e comportamento, com muitas sugestões de roupas e objetos para a casa, indicando que – sim – estamos diante de mais um modismo midiático.

Aqui no Brasil, a estreia do filme estava prevista para 23 de abril, mas bem antes disso o temaAlice já vinha aparecendo como mote para uma série de eventos. A Livraria Cultura, por exemplo, montou todo um ciclo de debates sobre a personagem e seus companheiros de aventura, como a Rainha Vermelha, o Coelho e o Chapeleiro Maluco. “Parece que o marketing redescobriu Alice”, avalia a professora de Literatura da Universidade de São Paulo (USP), Nelly Novaes Coelho, antes de fazer a ressalva mais importante: “Mas não é por isso que esse livro é imortal. A publicidade só pega carona nas boas qualidades da obra de Carroll. O modismo vai passar, e Alice vai permanecer maravilhosa”, completa a professora, que fundou a cadeira de Literatura Infantil da universidade.Alice no país das maravilhas, livro do britânico Lewis Carroll, que figura na prateleira dos clássicos da literatura mundial, está comemorando 145 anos de publicação. A continuação da história da garota de cabelos loiros que entra num mundo mágico depois de cair na toca de um coelho, Alice no país do espelho, é um pouco mais jovem, tem 138 anos. Apesar das idades avançadas, as duas obras conquistaram recentemente o status de um dos assuntos preferidos da mídia, principalmente nas páginas e editorias de cultura e comportamento. O estopim responsável por essa retomada e redescoberta de Alice é o lançamento da versão cinematográfica da narrativa, dirigida por Tim Burton, famoso pelos personagens tão grotescos quanto adoráveis, como o barbeiro meio frankstein Edward Mãos de Tesoura(1990), interpretado por Johnny Depp. As notas seguem pela seção de livros e terminam na seção de decoração, moda e comportamento, com muitas sugestões de roupas e objetos para a casa, indicando que – sim – estamos diante de mais um modismo midiático.
Diante do fenômeno de super-exposição das histórias de Lewis Carroll e de seus personagens tão diferentes, a pergunta que se deve fazer é: por que essas narrativas continuam tão vivas e capazes de suscitar paixões mesmo depois de quase 150 anos do lançamento? Nelly começa explicando que, na época da publicação das histórias, o mundo que Carroll apresentou rompia completamente com tudo que a sociedade vitoriana da Inglaterra estava acostumada a encontrar na literatura para crianças. “Até então, o que se tinha era uma literatura pedagógica, cheia de lições para as crianças”, conta. “Alice no país das maravilhasnão é nada disso. Aliás, é o oposto do que era considerado exemplar para as crianças. O autor trabalha com magia, rompe com o real e com o bom senso. E apresenta vários personagens absurdos”, completa a professora da USP. Essa ruptura brusca provocou um sucesso enorme. Em meados da década de 1860, o reconhecimento da história veio pelo mundo mágico e até então impensável, o oposto do cotidiano que as pessoas viviam. Já hoje o motivo é inverso, segundo Nelly. “O absurdo, o estranho, um mundo em que tudo pode acontecer, é exatamente o que vivemos hoje. A história de Alice faz muito sentido nos dias atuais e faz sucesso porque é plausível nos dias de hoje”, afirma.
Ainda à época do lançamento, além de descortinar um mundo impossível, Carroll conseguiu outra façanha. O autor apresenta ao mundo uma forma de narrar que não engana a criança. Ou melhor, que não faz com que a criança se sinta enganada. A professora de Teoria Literária da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Myriam Ávila, destaca que, por mais inusitados que fossem os conteúdos trabalhados por ele, a história foi contada com tamanha verdade que – invariavelmente – seduz a criança, que vira parceira da aventura e não mais uma leitora desconfiada. Pesquisadora da poesia non-sense, Myriam estuda o estranhamento nos textos de Carroll e de outro poeta britânico – menos famoso por aqui, mas tão importante como o pai de Alice na criação do inusitado – chamado Edward Lear. As investigações da professora mineira apontam que esse traço inovador de Alice no país das maravilhas se mantem mesmo nas adaptações mais simples e que esse encantamento só é possível quando o autor consegue alcançar e refletir sobre questões universais e atemporais. “É o que acontece com os contos de fada, por exemplo. Embora tratem de um reino distante e de um passado remoto, as histórias falam diretamente com cada leitor. Carroll conseguiu isso”, defende.
Ao mesmo tempo, o autor é muito feliz no retrato de uma época e do espírito que marcava aquele momento. “A Inglaterra da Rainha Vitória era uma terra em que as tradições, as regras, as homenagens e honrarias eram a coisa mais importante. Carroll retrata isso com um humor ácido. A Rainha Vermelha, ou Rainha de Copas, nada mais é que a própria rainha Vitória”. Nas páginas do livro, a rainha e as outras figuras da corte britânica da época e os próprios costumes sociais, como o chá das cinco, a pressa e o excesso de regras, são mostrados de um jeito absurdo, nonsense mesmo. E, apesar dessa característica ser revolucionária, não foi – em tempo algum – punida. Myriam conta que a rainha britânica leu o livro e gostou tanto que não só não mandou cortar a cabeça de Lewis Carroll, como pediu para receber todas as obras futuras do escritor. O que ela não imaginava é que as produções seguintes do autor seriam cartilhas de matemática e obras afins.
Aliás, o que causa estranheza é que Carroll era um professor respeitável, sério e preocupado em não cometer nenhum deslize em sua vida particular, segundo a professora da UFMG. Ele chegou a tentar ser um orador religioso da Igreja Anglicana, mas parece que a dificuldade para falar em público o impediu de seguir essa carreira. De qualquer maneira, é curioso imaginar que um mundo estranho, que rompe com todos os padrões da dita normalidade, tenha saído da cabeça de alguém com o histórico do escritor. Nelly gosta de atribuir essa façanha ao dom que os autores têm de traduzir aquilo que a sociedade toda já vive, mas que ainda não pôde ser nominado, não pode ganhar a concretude da vida real. Os melhores livros e os melhores autores antecipam as grandes mudanças, as revoluções, as angústias de seus tempos e, com sorte, alcançam o status da permanência, porque vão tão fundo nessas transformações, que seguem atuais. Myriam concorda. Ela não pode garantir que Lewis Carroll tivesse total dimensão da ruptura que estava propondo ao escrever Alice no país das maravilhas, mas sugere que o autor intuiu que algo de importante estivesse nascendo. “Tanto assim que, num tempo em que isso era totalmente incomum, ele tomava conta do esquema de vendas, das ilustrações e desenvolveu uma série de produtos que levavam a marca da Alice. Foi um trabalho de marketing mesmo”, conta.
Tudo indica que o escritor também sabia que o livro ultrapassaria o público infantil e cairia nas graças dos adultos. Segundo a professora da UFMG, a linguagem desenvolvida por Carroll encontra parentesco com aquela criada por William Shakespeare, séculos antes. O estilo inspirado no barroco, na estética do exagero e do bizarro pode e deve ter influenciado o autor de Alice, que propõe um mundo mágico para as crianças e cheio de ironias para os adultos. Por isso é que Nelly sugere que se leia várias vezes na vida Alice no país das maravilhas e Alice no país do espelho. Quando se é criança, segundo as duas professoras, a passagem para o universo fantasioso se dá sem nenhum sofrimento, e o leitor mirim experimenta o que é fora do comum dentro uma normalidade absurda. Quando se lê quando adulto, a passagem acontece de outra maneira, cheia de referências e bagagens, que torna a aventura saborosa e bem humorada.
Ainda para os adultos, questões como o posicionamento do indivíduo diante do mundo merecem algum destaque. No século XIX, quando o livro foi escrito, muitas mudanças estavam em curso, e o homem estava perdendo seu lugar de criatura preferida de Deus para virar um animal que tinha tido a “sorte” de evoluir para essa espécie que conhecemos tão bem, como defendeu o naturalista britânico Charles Darwin. Era uma época em que as certezas minguavam, e a complexidade do mundo só crescia. Estamos falando do pensamento de Karl Marx e Sigmund Freud, da redução do poder da igreja. Nesse contexto, a linguagem que sempre servira de tradutora já não conseguia dar conta da mediação entre o Homem e o Mundo. As histórias de Alice se encaixam perfeitamente nessa situação. E, para os adultos de hoje, a obra continua se prestando a esse papel de explicar o que causa perplexidade, estupefação. Naquele tempo, porque era o novo, o inimaginável. Hoje, porque é o que costumamos ver. Myriam lembra uma cena bem emblemática disso, em Alice no país do espelho, quando a Rainha pega a protagonista pela mão e elas correm, correm muito, até perderem o fôlego; quando param, estão exatamente no mesmo lugar.
Os leitores mais velhos também se encantam com Alice porque encontram símbolos, imagens do inconsciente que futuramente seriam tratados pela psicanálise. Lewis Carroll, provavelmente sem querer, acabou se denunciando em vários pontos das duas histórias. A professora da UFMG acredita que ele não tinha como perceber que estava expondo traços da sua personalidade, mas que acaba fazendo isso. A relação com o proibido, por exemplo, passa pela obra. Alice tem alucinações depois que come cogumelos mágicos. Nos anos 1970, essa passagem foi tida como apologética ao consumo de chá de cogumelos, uma infusão alucinógena bem comum naquela época. Myriam acha engraçado associar uma coisa com a outra, mas concorda que essa ligação é bem comum. Contudo, nos idos de 1860 e 1870, essa droga nem tinha sido inventada, por isso relacionar a obra às experiências dos hippies é um certo exagero. Por outro lado, o escapismo, a fuga para outro mundo em que a imaginação ganha corpo e que o ócio é bem vindo, ou seja, o flerte com o proibido está presente em vários momentos. É, aliás, por isso mesmo, que a professora da UFMG se arrisca numa análise pouco comum.
Para Myriam, Alice tem algo das heroínas feministas. Ela é uma garota jovem e inconformada. Rebelde, cansada da vida comum, aceita entrar e ajudar a criar um mundo diferente, em que coisas estranhas podem acontecer. O poder maior está nas mãos de uma mulher forte como a Rainha Vermelha, e Alice vai à luta para conseguir o que deseja. Para a professora, atualizações como esse olhar feminista para a personagem são sempre bem-vindas e ajudam a explicar porque ainda hoje as histórias de Lewis Carrolll causam comoção. Nada disso, contudo, resolve o mistério da permanência da obra e, a bem da verdade, as especialistas em literatura acreditam que a busca não seja mesmo por esgotar o assunto. Nelly e Myriam acrescentam que não há idade certa nem porta certa para mergulhar nesse mundo. Aproveitar a ofensiva da publicidade e do cinema hollywoodiano pode ser um bom começo. Para as crianças menores, as adaptações em forma de livros com pop-ups e o filme dos estúdios Disney pode ser um convite eficiente. O fato para as duas é que “Quanto mais gente ler Alice, melhor”.

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